"O que se faz agora com as crianças é o que elas farão depois com a sociedade." Karl Mannheim
Parti mais uma vez para o interior do Maranhão e Pará, com outros olhares, experiências e companhias. Éramos quatro: Dois de Recife, que na verdade representam São Paulo, e uma de São Paulo, que trabalha no Projeto comigo; ou seja, representava São Luís.
Diferentemente cansativa, a viagem foi aquela mistura de avião, carros e caminhonetes; estradas de asfalto esburacadas; estradas de terra e lama - um bom teste para minha coluna.
Academia abandonada, carro na garagem e aluguel sem muita razão, segui para o cumprimento de uma agenda que não se designava a mim propriamente: me vi no bastidor de uma pré-estréia, entre re-encontros, novos encontros, mesmas pessoas, conversas diferentes e a certeza de que amadurecemos e somos um pouco "outros".
Assim, sem o protagonismo anterior, me esforcei para os eventos sociais e me abri às oportunidades específicas de cada localidade, onde uma mereceu este compartilhamento:
No Sábado, pela metade da manhã, fui participar de uma ação da nossa empresa e cliente com as crianças de uma das cidades-base do nosso Projeto, no interior do Maranhão. Foram montadas gincanas em um ginásio abandonado, mas limpo para a alegria, e havia 500 delas reunidas, infelizmente, entre a miséria e a carência: e "dessa vez, me pegou de jeito".
Além de observar todos aqueles olhos a procura de afeto, sem muito jeito para brincadeiras, como se aquilo não os pertencesse, quis adotar fortemente uma menininha linda, moreninha de cabelo castanho claro, com pontas loiras, queimadas de sol, pele também, com uma bola de futebol de plástico entre os dez dedos curtos e fofos, a procura de alguém.
Tocava Xuxa e até achei a energia boa, quase voltando a gostar dela.
Peguei a baixinha pelo ante-braço (porque ela não largava a redonda) e comecei a dançar. Sou desengonçada, tudo bem, mas dá para acompanhar uma quebrada. Do jeito que estava, a figurinha de vestidinho rosa e sapatinho vermelho se manteve.
Me olhou por mais alguns segundos, com um semblante "eu, hein, tia?", e saiu. Continuei a olhá-la. Passei a acompanhar um outro círculo de brincadeira (dança da cadeira) e a perdi de vista.
Em alguns minutos, abaixaram a música e alguém falou ao microfone "por favor, vejam esta criança - e um Voluntário a carregava no colo. Ela está sem mãe. Por favor, observem essa criança e pedimos que a responsável por ela venha buscá-la". Meu coração acelerou, olhei para o pessoal do escritório e todos disseram "a sua menininha!". Fui para onde ela estava e a encontrei chorando, desesperada. Não quis vir no meu colo e ainda segurava a bola forte, como que rezando para que quem quer que fosse aparecesse.
Foram longos cinco minutos, até que uma senhora (ou seria moça e as condições dela é que eram ingratas?) se revelasse como mãe da princesinha, com um outro no colo e outro no ventre. Pegou-a pelo braço, sem qualquer amor, não agradeceu e apenas disse "é minha".
Dei mais uma volta pela quadra e começaram a organizar fila para entregar lanche à meninada: havia uma "pipoquinha doce", do tipo Aritana, mas menor e de embalagem amarela; bolinho de chocolate Bauducco e aqueles refrigerantes "pitchulinha".
Ah!, que sábado inesquecível para todos!
Ainda ao som da Xuxa, vejo dois molequinhos me olharem quase que impressionados. Retribuo com um "oi" e o inevitável apertar nas bochechas (que nada tinham de carne), quando o mais novo me diz, apontando para a bola de plástico que carregava:
- Tia (será que estou mesmo?), tira aqui pá mim.
- Tirar por que? Se tirar este pino, a bola estraga e esvazia.
- Tira, Tia. Quero por ela no bolso para conseguir pegar o lanche.
- Ô fofura, entre na fila, pegue o lanche que seguro a sua bola.
Ele ficou o tempo todo me vigiando, desconfiado. Pegou os pacotes e a garrafinha e perguntou se podia se sentar ao meu lado. Eu estava em pé, disse que sim, abaixei e fiquei olhando-o comer, devorando tudo sem ao menos sentir o gosto, deixando restos entrarem pelo nariz, como se fosse a primeira e última"refeição" da vida.
Ao final, pegou a bola comigo e saiu, correndo.
Acabada a ação, compartilhei com algumas pessoas que até mesmo o cheiro daquela experiência era igual ao que carregava comigo quando fazia mutirão nas favelas de Belo Horizonte.
Depois de toda a absorção devida por todos os rostos e olhos e mãos e bocas que vi, fomos almoçar e, enquanto nos fartávamos, falávamos deles. Comentei também que conheci uma menina de 15 anos, com a segunda filha no colo, de seis meses.
Não se espantaram tanto, porque as meninas daqui engravidam com 12 e 13 anos do pai ou do irmão e que, sendo o fruto feminino, aliciam para outros para "dar dinheiro", porque mulheres não são tão bem aceitas e preferem filhos, que produzem e "dão dinheiro".
Bom, a viagem continua por mais cinco dias e outras três "cidades". Esta foi só uma parada para a recuperação do fôlego, que por alguns minutos eu perdi.
"O mais importante na vida não é a situação em que estamos, mas a direção para a qual nos movemos". Oliver W. Holmes