terça-feira, 29 de agosto de 2017

O mito de que atrair e selecionar resolve

"O esquecimento sistemático do antigo é um e o único meio de forçar o novo." Peter Drucker

A gente sabe que está essa falação sobre propósito, sobre os jovens se motivarem por fatores extrínsecos diferentes dos habituais ofertados pelas políticas de RH, principalmente das grandes organizações.

A gente sabe que boa parte da responsabilidade de atrair, selecionar e reter os tais talentos recai sobre o RH.

E a gente sabe que, por mais que se fale muito também sobre o papel da liderança em deixar de mandar e passar a inspirar, desenvolvendo as pessoas, ainda não aprendemos a trabalhar com os rebeldes: nem líderes, nem RHs - e estou sendo literal mesmo: segundo o dicionário, rebelde é "o que ou quem não se submete, não acata ordem ou disciplina; insubordinado".

Não é uma apologia ao anarquismo, mas uma tentativa de compreensão, provocativa, sobre o que de fato queremos - pessoas e organizações - seja no papel de líder ou de RH.

Tenho, felizmente, conhecido profissionais genuinamente interessados em transformar positivamente a forma como conduzem uma experiência voltada a resultados de negócios, que pragmaticamente colocam o "humano no centro de tudo" e propõem soluções integradas à aliviar as suas dores, não sendo superficiais em apenas promover pontuais prazeres.

Nestas minhas trocas e experiências, percebo empresas de verdade, porque são feitas de pessoas de verdade, no exercício do desapego e do interesse em construírem um legado e uma entrega coerentes com a promessa que fizeram ao longo do encantamento da atração e da seleção.

Histórica e culturalmente, o RH tende a valorizar o "politicamente correto", mas as pessoas hoje que incomodam nas organizações - e não limito este papel apenas aos jovens - são as que provavelmente farão a diferença - e aquelas que não encontrarem espaço, apoio e condição real de quebrar o status quo, serão aquelas que não se sentindo adequadas sairão para montar as empresas que estão mudando o mundo e que poderão, inclusive, quebrar ou incomodar ainda mais as organizações que conseguiram tê-las, mas não aproveitá-las.

Por outro lado, mesmo que se tenha um RH não tão apegado à zona de conforto do não risco, ele pouco conseguirá influenciar se a liderança apenas reclamar do rebelde e não se dispuser a lidar com ele, mesmo que tenha razão sobre os defeitos dessa insubordinação.

A questão, ao meu ver, é que ter cada vez mais consciência de que uma escolha que traga mais prosperidade a longo prazo, mesmo que menos prazer a curto prazo e que exija dos influenciadores da organização que também quebrem o próprio status quo e se assumam inábeis para lidar com muitos dos desafios atuais, a começar por desenvolver os rebeldes, é uma das mais importantes escolhas, fazendo-se entender de que a fuga da dor de hoje é evitar a conquista do prazer e da satisfação da perpetuidade dos negócios ao longo do tempo.

E é por isso que escolher é libertador: mais do que decidir é bancar a decisão de ter que arduamente desenvolver essas pessoas, porque a meta de atrair e selecionar não é sustentável para ninguém: nem líderes, nem RHs - e não há outra forma de fazer, senão reaprender e se permitir para algo novo: bem novo!

terça-feira, 22 de agosto de 2017

O vazio preenchido do deserto - o último

Não vês que somos viajantes?
E tu me perguntas:
Que é viajar?
Eu respondo com uma palavra: é avançar!
Experimentais isto em ti
Que nunca te satisfaças com aquilo que és
Para que sejas um dia aquilo que ainda não és.
Avança sempre! Não fiques parado no caminho.
Santo Agostinho.

Depois do banho, voltamos à rua Caracoles no início da noite para tentarmos agendar os passeios que nossos colegas haviam sugerido - Flamingos! - e foi uma correria só, porque também gostaríamos de fazer as Termas Puritama, um oásis de cachoeiras (quedas d'água, na verdade) e oito piscinas que têm a temperatura da água entre 28oC e 35oC; e as agências estavam fechando: nossa dúvida era se fazíamos os Flamingos de manhã e as Termas à tarde, o que não era recomendado, porque apesar da água ser quente, o sol só bate de manhã; ou seja, sair das piscinas seria no mínimo corajoso.

Como não queríamos abrir mão dos Flamingos, decidimos que não havia muito o que pensar e logo fechamos os tours, jantamos por ali num lugar delicioso, que ficaria por horas, mas o transfer nos buscaria entre 6:30 - 6:45 e acordar naquele frio matinal seria um suplício: ou seja, nada de segunda garrafa de vinho, muito menos ouvir a segunda banda. 

A chegada até o Parque Nacional dos Flamingos foi tranquila, demorou uma horinha, se não me engano, mas descer da van foi difícil: fazia grau negativo e ventava, ventava, ventava. O guia preparou café da manhã para o nosso grupo, com um pão delicioso, mas mal conseguia ficar do lado de fora: em poucos minutos voltei para a van e desejei um cobertor, quando olhei pela janela e vi a Amanda lá longe, tirando fotos da Lagoa de Chaxa.

Confesso que demorei um tempo até criar coragem para sair e encarar o frio para desfrutar de todo aquele oásis inacreditável, ainda sem flamingos, que são as lagoas  no meio do deserto de sal. Andamos por horas pelo parque e nos surpreendíamos a cada parada que explicava a formação daquelas lagoas: toda a água é proveniente do degelo das Cordilheira dos Andes e como ela escoa por vias subterrâneas, carrega muitos minerais, que deixam o deserto mais acinzentado do que branco. Isto, no contexto de um céu azul celeste, com o rosa dos flamingos e o branco de outros pássaros, nos fez n'algum momento sentar e contemplar, por muito tempo.

O frio já não incomodava mais e também já era hora de partir: seguimos com o grupo para a comunidade de Toconao, que embora já havíamos ido, o guia nos dissera que faria outros pontos de parada. Já na pracinha do povoado, entramos numa igrejinha linda, acolhedora, que ainda guarda ruínas da construção original, de 1744. 

Dali, demos uma volta para conhecermos os trabalhos das artesãs locais e, aos poucos, começarmos o rito de despedida daquela viagem incrível, com muita conexão com a natureza e o espírito do tempo, de tantas épocas distintas.

Quando voltamos à São Pedro o relógio já passara das 13h e Amanda e eu nem pestanejamos outra solução para o almoço, que não as maravilhosas empanadas do Café Esquina, já que o transfer para as Termas sairia as 14 horas - para nossa surpresa o passeio só tinha nós duas e, segundo o motorista, "não é comum ir às Termas à tarde. Lá faz muito frio, quando sai da água. Melhor ir de manhã".

Amanda e eu já estávamos de biquíni e achei, ingenuamente, que, chegando, só me bastaria tirar os casacos, térmica, cachecol, gorro, luva para "tomar um sol": fria ilusão - a coisa é tão séria de "não ir à tarde", que o ingresso às termas é o dobro do valor, se você vai de manhã; ou seja, passar frio é uma espécia de promoção (risos).

Mais uma vez, não tínhamos o que fazer, senão ir: e que ida! Que lugar maravilhoso! 

A estrada em si vale a pena pela paisagem e pelo frescor do vento e do cheiro tão diferente de qualquer outro clima ou ambiente natural.

Meu coração já palpitava, sentindo que estava acabando.

Os 800 metros de trilha até chegar às piscinas são de um verde com bege harmônicos e, lá debaixo, ao olhar para cima, me dei conta, de novo: "Estou num oásis no meio do deserto!".

Depois de lermos várias informações distintas sobre as piscinas, Amanda e eu optamos por entrar na mais quente e ficar nela, sem trocarmos uma e outra, para não corrermos o risco de desistir na primeira rajada de vento - e entrar não foi difícil: em segundos tirei os quilos de roupa roupa e pulei - relaxante e mágica a experiência.

Talvez duas horas tenham se passado, quando decidimos sair. Eu fui primeiro, a toalha já estava bem rente à borda das pedras que nos servem de escada: inacreditável e indescritível o frio! Nada comparado ao tour astronômico, ou à espera do amanhecer dos Flamingos. Eu não sentia nada, apenas meus ossos se contorcerem. A dor do gelo do frio era tamanha, que quando a Amanda saiu, mal podia mexer os braços para pegar a mochila e o tênis dela. E ainda tínhamos a máquina. E a minha mochila. 

Trêmula, com meus lábios roxos e, parada, sem conseguir me mover, só consegui dizer: "corre, vai para o banheiro!". Mas a Amanda só ria, de dor e nervoso. A gente não conseguia se mexer. Ficamos, as duas, curvas, quase em posição fetal, tremendo, querendo rir e chorar. 

Não sei como, muito menos da onde, me veio uma força, transformei a energia em calor, dei um passo para frente, e outro. Peguei a minha mochila. A dela. A máquina. Meu tênis. Faltava o dela. E eu só consegui dizer, tremendo, "vem, vamos".

Dali para frente deu branco.

Só me lembro de, já no vestiário, eu pular e gritar "puta-que-pariu-que-frio-da-porra-vou-morrer-relaxa-o-caral**".

Pânico. De-ses-pe-ra-do-ra a sensação. Quando enfim me vesti e me sentei para calçar o tênis, eu só conseguia pensar: "meia, eu te amo! Você é a melhor invenção de todos os tempos!". Por uns cinco minutos, sentada, em silêncio, mesmo com o cabelo molhado, eu finalmente pude sentir o impacto das águas termais no meu corpo e relaxar, com os pés, o corpo e o coração quentes.

Ao sairmos e, enquanto subíamos a trilha de volta, eu só conseguia agradecer ao universo por ter construído aquilo tudo e por nos meus extremos me lembrar dos meus limites e, sobretudo, da coragem em superá-los: toda dor vale a pena!

De volta a rua Caracoles, no fim do dia, admiramos mais um por do sol. Brindamos com um clássico Carmenere e voltamos à pousada para esperar a van que nos levaria de volta à Calama.

Apesar da estrada me parecer conhecida, era eu quem precisava me reconhecer depois de tantas novas experiências e novas descobertas sobre mim mesma e minha relação com este mundo, vasto mundo.




terça-feira, 15 de agosto de 2017

Um forte de ruínas no Deserto | parte IV

"O caminho é o que importa, não o seu fim. Se viajar depressa demais, vai perder aquilo que o fez viajar." (Louis L'Amour)

Andamos pela rua Caracoles, entramos em ruelas que ainda não tínhamos ido, voltamos às lojas de câmbio, considerando trocar mais dólares por pesos chilenos, avaliando uma possibilidade de fazer um passeio de balão, se esgotássemos todas as rotas alternativas nos próximos dias.
Já era quase início da tarde quando nos lembramos de termos visto uma casinha com a placa de "central de informação ao turista" na praça principal - e única. Fomos até lá e perguntamos o que poderíamos fazer, além daquilo que tínhamos feito.

O atendente reforçou "todo lugar cerrado por la nieve", falou da ida de bike ao Vale de la Muerte e, quando estava prestes a desistir de trazer algo novo para nós, perguntou: "O Pukará de Quitor, vocês também já conheceram?".
- Opa! Este não! - olhei para a Amanda.
Ela pediu para que ele nos mostrasse no mapa: "vai que" havíamos entendido errado o portunhol dele.

De fato, não havíamos ido, mas nos animamos ainda mais quando ele disse que deveríamos ir a pé. Segundo ele, e mostrando no mapa também desproporcional, "3km do centro de São Pedro até lá".

Embora nossas pernas ainda doíam da pedalada do dia anterior, havíamos dormido bem, o café da manhã fora novamente mega reforçado. 
Na saída da Caracoles, olhamos para a direita e passei a seguir às coordenadas da Amanda: sou péssima para mapas! e ela disse com muita segurança: "depois daquela direita, é só seguir reto".
E foi. Mas por um bom tempo sentimos dúvidas sobre o caminho pelo qual caminhávamos, já que não havia placa e todas as referências do mapa desproporcional mais nos irritava ou confundia do que ajudava.

Quando enfim chegamos à entrada do Pukará e pagamos alguns pesos, que não me lembro quanto, mas acho que fora o passeio mais barato até então, não parecia assim ser grandes coisas. Ao longo da caminhada pelo Forte, descobrimos que era uma construção do século XII, realizada para proteger o povo atacamenho de invasores de outros lugares da América do Sul, por ser um lugar estratégico em termos comerciais, principalmente por estar sobre o Rio Grande e, portanto, por gerar uma riqueza à época, via cultivo, incomparável às demais da região.

Aquele dia fazia sol e calor e quando terminamos de andar pelas ruínas, achando tudo meio sem graça frente tanta beleza já vista, sentamos e pudemos avistar São Pedro bem de longe. Eu mesma só pensava sobre tudo o que tinha lido e as guerras que por ali aconteceram, pouco mais de 700 anos antes.

Ao pegar o celular para tirar uma foto, vi que estava sem bateria. Pedi o da Amanda emprestado - sem bateria. E isso acontecera várias vezes com o meu - desligar, do nada - com o dela havia sido a primeira vez e naquele momento apenas lamentamos não podermos tirar foto, já que a máquina, mais pesada, havíamos deixado no hotel, sabendo que caminharíamos com tanta coisa no lombo.

No meio da tarde, na descida para sairmos do Pukará e pegarmos a estrada para a cidade, vimos um pessoal no alto de uma outra montanha. Sem placas ou orientação no mapa do próprio Forte, fomos andando no sentido daquela gente e achamos uma bifurcação. Começamos a subir, sem saber para onde. Seguíamos um fluxo de percepção, não de pessoas.

Sem relógio ou celular, não fazíamos ideia do tempo. Num determinado momento do caminho, avisto um casal descendo. A mulher um pouco mais à frente do homem. A mulher passou por mim. Quando ela passou pela Amanda e eu passei pelo homem, tcharam!, nos conhecíamos de São Paulo: era um casal que trabalhara na mesma consultoria que a gente.

Ufa!

Papo vai, papo vem, eles nos disseram "Subam! Vale muito a pena! A vista é demais (...)!".
Depois de falarem um pouco daquele percurso, trocamos informações sobre o que haviam feito e o que ainda fariam. Falamos do "cerrado por la nieve" - uma pena! Dentre as trocas, eles ainda não tinham ido ao Tour Astronômico e falamos bastante do frio - depois pensamos que os assustamos demais, mas melhor passarem calor (e duvido que tenham passado), do que frio - e eles nos falaram dos Flamingos - que ninguém nos tinha dito: nem os atendentes das agências, nem o gente boa da casinha de informação ao turista (mas se ele não nos avisou que dentro do Pukará tinha uma trilha para algo mais significativo, quiçá sobre passeios fora do script!).

Definitivamente empolgadas para então subir todo aquele caminho, que na verdade não acabava nunca, eu mesma pensei em desistir várias vezes:
1) Não cruzávamos com ninguém por horas - ou talvez minutos e estar sem relógio era só afobação indevida;
2) Nossa água estava acabando;
3) Precisava muito fazer xixi;
4) Não tínhamos comida;
5) Sabíamos que seria bonito, mas tínhamos dúvida se a beleza valeria a pena;
6) Queríamos desistir, mas depois pensávamos que poderíamos nos arrepender, ao chegar em São Pedro, dar um Google, e ver que era a vista mais bonita da vida!;
7) Tínhamos medo de anoitecer e ficarmos sem lanterna para voltar;
8) Mal estávamos próximas de chegar ao topo e já pensávamos que depois de subir, tínhamos que descer e caminhar os 3km até a cidade;
9) O fôlego parecia ser pouco, para tanto!

Enfim. Mar de conflito mental. Mas enquanto tínhamos dúvida, caminhávamos.

Quando eu realmente pensei em desistir, porque já desacreditava que havia qualquer fim, avistamos um garoto, descendo:
- São quatro horas da tarde. Mas em cinco minutos vocês chegam!

Pensei: "Cinco minutos? Bom, ou é cinco minutos - e sei lá como vou saber se já se passaram cinco minutos - ou vou embora!".

A Amanda disse, rindo: "Agora eu vou até o fim. Se quiser me espera aí".

Finalmente, chegamos!

Uma pena que não tenhamos registro dessa vista.

Eu ainda só pensava em controlar o xixi e a sede e a fome e o stress. E consegui desfrutar, somente depois que li numa  placa que ali, no alto de todos os desertos que já havíamos visitado - de terra, sal, neve e tudo isso misturado - havia uma cruz em homenagem a todos aqueles que foram mortos e torturados em barbáries, cujo genocídio indígena provocado por espanhóis só fora reconhecido em 1984, quando fizeram do Pukará um Monumento Nacional de valorização à vida e de reconhecimento público da história que os envergonha, mas que deve ser lembrada, para não ser repetida.

Alguns minutos depois - ou muitos minutos depois - pouco me importavam todos aqueles meus sentimentos. Me deixei levar pela emoção e energia daquela cruz, daquela história, daquelas ruínas que lá de cima pareciam amontados de pedras desorganizados, mas que guardavam vidas, embora agora todas mortas.

Não me lembro que hora chegamos, ou o que fizemos. Não registrei o tempo. Não me lembro se cansara demais. Se voltamos bem, sem medo de nos perder. Mas me lembro que adentramos São Pedro antes do anoitecer e que, definitivamente, guardava para o universo que o próximo, e último dia, fosse como todos os outros: um exímio caminhar, enquanto caminhamos.


terça-feira, 8 de agosto de 2017

Marte fica na Terra - Atacama | parte III

"A persistência é o caminho do êxito". Charles Chaplin


No nosso terceiro dia, pelo roteiro original, estaríamos no Salar de Tara, uma das paisagens mais lindas do Atacama - segundo nos disseram e lemos - mas como tudo ainda estava "cerrado por la nieve", tomamos um café da manhã reforçado e sem pressa - nada mais agradável do que degustar dos momentos prazerosos da vida, sem se importar com o tempo.


Neste dia, o sol parecia estar mais forte e ventava menos. Assim que viramos a esquina, saindo da nossa pousada, as lojas de aluguel de bicicleta estavam lotadas. Olhei para a Amanda e perguntei "por que, não?". E não que ela tenha resistido à ideia, mas topou com ressalvas por não ser das mais praticantes do esporte.

Esperamos um casal e um grupo de quatro amigas serem atendidos. Eu estava super ansiosa, a Amanda, tranquila no sol.

Um dos rapazes da loja me chamou. Fomos. Pelo portunhol dele, entendemos que nos dariam, além das bikes, "cascos" (adoro essa palavra, mas são capacetes - risos), colete refletor e outras ferramentas, caso precisássemos trocar ou encher pneus - prontamente dissemos que não seria necessário, mas ele reforçou "tem muita pedra". Amanda e eu nos olhamos para um último "será que encaramos mesmo?" e fomos, seguindo um mapa muito mal desenhado e desproporcional, fazer a trilha que nos levaria ao Vale da Morte - ou de Marte; aliás, a lenda é: seria o nome "Morte", porque os burros chegavam cansados da Bolívia, com seus lombos feridos e, ao não conseguirem subir o Vale, caíam no precipício?; ou seria Marte, em analogia à suposta formação do planeta vizinho? Verdades e mitos à parte, em menos de 10 minutos chegamos ao asfalto da estrada que liga São Pedro à Calama e, dois minutos da primeira subida, quem (quase) morreu foi a Amanda: mal respirava - sim, tinha a recente aclimatação, ainda não 100%, mas era falta de preparo mesmo - não que eu seja atleta, longe disso, mas estou mais habituada a exercícios físicos do que ela, claramente. 

Para o fôlego, nos recolhemos debaixo de uma cobertura do que seria um ponto de ônibus e eu ria, afoita para continuar, enquanto Amanda deitava no banco, sem condições de falar nada - apenas respirava e bebia um pouco d'água.

Não sei quanto tempo demoramos para recuperar as forças e, eu, a convencer a Amanda a continuarmos, até enfim voltarmos ao asfalto e, logo, encontrar uma descida gratificante! Assim que ela acabou, chegamos à entrada do Vale de la Muerte e começamos a pedalar em meio a areia, sal, cascalho e terra batida - uma loucura!

Teoricamente o mapa sinalizava que andaríamos por 3km até chegarmos às dunas de areia em que turistas se reúnem com suas pranchas para praticar sandboard. Paramos duas vezes até chegar neste ponto de encontro e, ao descobrirmos ali um bicicletário, nem cogitamos rolar na areia lá de cima, mas estacionar as bikes e continuar o próximo 1km a pé, como algumas pessoas haviam sugerido.

Olhando lá debaixo, chegar até o topo do Vale parecia moleza - para quem pedalou quase 4km, trabalhando as pernas em fazer as rodas girarem nos cascalhos sem que caíssemos, caminhar não aparentava sufoco: ledo engano - e dessa vez que bufou fui eu: mal respirava! Nossa água estava no fim. Meus pés afundavam na areia. A Amanda estava ótima: muito confortável e feliz fora da bicicleta. Agora ela ria. Pensei em desistir, porque quanto mais próximo parecia a casinha em cima do Vale, mais longe ela ficava do acesso. Eu só conseguia pensar: "Paro ou continuo? Por onde vamos subir? Não vejo escadas. Vamos escalar?". A Amanda ria. Às vezes passava à minha frente, tirava zilhões de fotos e, quando eu chegava perto dela, prestes a desmaiar e, ela agora com a mochila nas costas, ela dizia "quer parar? Mas tá quase". Esse desafio era um incentivo. Imagina! Havia chegado até ali, ia parar? E fui. E fomos. E parava. Faltava ar. E subíamos, subíamos, subíamos. Não havia ninguém no trajeto conosco. Às vezes eu até duvidava se o topo existia mesmo ou se não era miragem. 


Quando, num momento de fôlego, olhei para trás e vi o tanto que já tinha caminhado, senti orgulho - e duvido que era só 1km! Mediram errado. Não pode. Corro muito mais que isso - na esteira (risos)! As dunas de areia pareciam um pudim pequeno. Nem via mais as pessoas, nem tão pouco suas pranchas coloridas. Incrível aquela imensidão. A beleza dava a energia que faltava. Subimos, subimos e, numa bifurcação, viramos a esquerda para subir ainda mais e chegar ao topo: "Vamos Babi, 'tá quase". Era quase uma escada. Primeiro o pé direito, subo, caio com as mãos no chão. Um pé de cada vez. Um degrau por vez. Chegamos!

Inenarrável a descrição da paisagem, com o cânion que termina bem em frente ao vale, onde a vista de todo aquele terreno árido, alaranjado e irregular e suas enormes dunas de areia tomam conta de tudo. Se Marte for assim, Marte é lindo! Que "muerte" que nada. O vale é vida. Não tem passarinho, nem flor, nem plantas, nem água, nem nada. Mas é vida. Quando sentei, agradeci novamente. Respirei fundo, numa mistura de buscar fôlego com suspirar de emoção. 

Não sei por quanto tempo ficamos ali. A nossa água acabara de vez. Não havíamos levado nada para comer, eu acho. Mas ali em cima, não necessitava de absolutamente nada, apenas de permitir a consciência sobre meu corpo e sentidos.

A Amanda andou por lá. Não quis sentar. Sumiu. Mas nem dei notícia - só reparei quando ela voltou dizendo "a vista do outro lado é foda também". Mas eu não quis ir. Estava muito feliz com meu planeta. Com aquela vista. Tirei meus tênis. A meia. Deixava o vento circular. Deitei. Me sujei, mas quem se importa? 

Era hora de voltar. Parecia que ia anoitecer. Cogitei esperar o pôr-do-sol ali, mas encarar os 3km de bike dentro do vale, mais uns 2km de asfalto, até chegar, não seria muito oportuno. Decidimos então nos despedir. Difícil. Não queria parar de ver aquela paisagem. Mas precisávamos descer. Descemos, eu afundando a cada passo, e a Amanda voando como passarinho, quase que em silêncio. Só voltamos a nos falar mesmo na hora de pegar as bikes, colocar os coletes e os cascos. A gente não tinha água. Dali em diante só precisávamos seguir em frente e chegar; sem muita pressa.

De volta a São Pedro, com as pernas literalmente bambas, um cansaço feliz, resolvemos pelo almo-janta de imediato, sem banho, para prolongar o sentimento de ter ido à Marte.

Brindamos "a la nieve" por ter caído e por ter feito do nosso plano B, o plano A.



terça-feira, 1 de agosto de 2017

Dos desertos do Atacama | Part II

"Sou feito das ruínas do inacabado e é uma paisagem de desistências que definiria meu ser". Fernando Pessoa

Parecia que o frio da noite anterior não havia passado. O tour astronômico vale muito a pena, mas não conseguimos ficar as duas horas completas: às 21 horas já fazia -6oC e apesar de estarmos com roupas apropriadas, vestidas com nossas térmicas, luvas, gorros e meias, o vento era cruel e parecia nos cortar, misturado com o ardor do tempo seco. 

Ao longo dos quase 60 minutos em que aguentamos de pé, observamos a maravilha das constelações e as histórias narradas sob a perspectiva de cientistas, que sabem também usar de poesia e sensibilidade para desenhar, junto com a gente, através de lasers apontados no céu, o conjunto bilenar de estrelas. 

Logo depois que vimos os anéis de saturno, aparentemente tão próximos de nós, cedemos e buscamos abrigo. Aos poucos os demais turistas foram se rendendo ao frio e, quando nos reunimos novamente, fomos acalentados com um delicioso chocolate quente, que mais bem-vindo pelo sabor, foi para aquecer as mãos quase congeladas. 

Naquela manhã, então, acordamos bem cedo para conhecer o Vale do Arco-íris, que fica na Cordilheira Domeyko, formada há 150 milhões de anos, e que divide a paisagem com o Deserto de Sal e a Cordilheira dos Andes - visual da estrada totalmente diferente dos outros dias: montanhas avermelhadas, polvilhadas levemente pelo branco rústico e delicado de neve com sal.

Apesar de ainda estarmos sob o efeito do frio como se tivéssemos dormido no freezer, esperando o vento gelado perder força pelo sol que acordava, a caminhada pelo Vale é bastante agradável, e embora a nossa guia trouxesse explicações muito técnico-científicas para o meu agrado, elas me despertaram para uma admiração quanto à paixão destes profissionais naquilo que fazem, cada qual na sua forma de contar a história do universo!

A Lorena, essa nossa guia, às vezes, andando a esmo, se abaixava, recolhia uma pedra e dizia "olha que maravilha essa mutação", e explicava em detalhes as variadas cores num pequeno pedaço milenar do mundo, ali, na palma da mão. 

Naquele Vale, conheci a planta rica-rica, famosa por ser curativa quando utilizada como chá e por dar um sabor especial ao famoso drink pisco-sour. Em meio a vento, ventania e um sol que tentava esquentar, discreto no céu azul sem nuvens, andamos por rochas plutônicas e vulcânicas, sendo que a mais "nova" tinha mais de 5 milhões de anos!

Numa bifurcação de paredões coloridos, Lorena sugeriu que sentássemos e fizéssemos um minuto de silêncio, em que cada um escolhesse pelo que calar. Todos consentiram. Foi a escuta mais profunda do silêncio que tive em toda a minha vida; rezei o Pai Nosso, agradeci e contemplei por estar num lugar que se constrói e se reconstrói a cada partícula de vento. Ao sinal sonoro, suave, da Lorena, para nos despertar daquele momento, nos demos conta de que mais de dois minutos haviam se passado e que poderíamos nos calar por muito mais tempo, num verdadeiro exercício de pertencer.

Dali, fomos conhecer alguns Petroglifos, quando logo depois da segunda arte rupestre identificada - lhamas aparentemente "correndo" - um rapaz que estava no nosso grupo urrou de dor: havia torcido o joelho na passagem de uma pedra para outra. 

Prontamente as pessoas se mobilizaram para chamar o motorista da van que nos aguardava num estacionamento distante, outras pegaram neve à beira da montanha para tentar aliviar o inchaço imediato, enquanto outras pessoas davam-lhe apoio para andar, já que não conseguia mais pisar no chão. 

Daquele grito em diante, as pinturas de 2.000 a.C e, mesmo as mais novas, de 500 a.C, se tornaram pouco importantes e só gostaríamos de voltar à São Pedro de Atacama, para que o garoto, que viajava sozinho, pudesse ser atendido, mesmo que com um amparo pontual da Lorena.

A vantagem deste imprevisto é que chegamos ao centro da cidade com o tempo muito curto para almoçarmos e, então, pudemos experimentar da incrível "super empanada" do Café Esquina, um restaurante super pequeno na virada da rua Caracoles com a Domingo Atienza: certamente será difícil encontrar uma dessas - com a massa tão leve e fresca e com o recheio tão saboroso - nos lados de cá.

Renovadas do susto e felicíssimas pela super-empanada, seguimos para o Vale de la Luna; que até aquele dia passara a ser o mais surpreendente: a trilha cansativa, com momentos de caminhada por areia-fofa, que dificultavam as passadas, somado ao fato de estarmos não só no deserto mais alto, como o mais seco do mundo, me fazia perder o fôlego e quase o prumo; até que chegamos à recompensadora vista. Sentei. Deslumbrante! A paisagem em si é uma mistura de dunas de areia, com rochas e ruínas e caminhos que há milhões de anos foram rios e riachos. Sal e neve coabitando, e o por do sol ensaiando para acontecer naquele mar de imensidão, em que nunca esteve pronto, nem nunca estará, reconstruindo-se a cada evento natural - assim como nós!



*Não adesão à nova regra gramatical.