segunda-feira, 30 de março de 2020

Lifelong learning real: O que ter morado na Líbia há 10 anos me ensina hoje

"Sei lá, sei lá, só sei que é preciso paixão.
Sei lá, sei lá, a vida tem sempre razão".
Toquinho e Vinícius

Morei por um ano e meio na Líbia*, no Norte da África, entre Janeiro de 2009 e Junho de 2010. Saí um pouco antes de eclodir a Primavera-Árabe, vivendo os últimos anos da ditadura do Khadafi. Ao longo desse período, ia da casa-para-o-trabalho-e-vice-e-versa, e só

Pouco consciente de que aquela experiência me traria aprendizados para toda a vida (#lifelong learning), instintivamente estabeleci para mim duas premissas de sobrevivência: estar ali naquela condição teria uma razão superior à qual eu pudesse imaginar e era preciso, de alguma forma, vivenciar alguma das minhas paixões - e foi assim que passei a escrever semanalmente como válvula de escape para mim e para me sentir minimamente conectada aos meus amigos e familiares. 

Escrever virou um hábito por muitos anos e publicar as reflexões também - que estão aqui no blog e condensadas neste meu livro lançado em 2018, Sem medo, sem rumo.

Semana passada, durante minha sessão de terapia online, minha terapeuta perguntou:
- Como você tá com essa história toda do Corona?
E eu respondi:
- Estou bem, muito bem! 

E eu estava mesmo. Sem pensar, complementei:
- Morei na Líbia, né? Um ano e meio confinada. Isso aqui 'tá tranquilo'.

Naquele instante não dei conta das minhas palavras, mas hoje, uma semana depois, essa fala reverbera em mim diariamente, e por isso decidi compartilhar com vocês o que aprendi há 10 anos e que resulta no meu equilíbrio atual para lidar com o #covid19, hoje. Talvez sirva para você, talvez não. Mas eu realmente espero que sirva pr'alguma coisa:

Aprendizado #1 [com 1 semana de Líbia]: Reaprender poderia ser um costume.
"Dar a mão ao outro pode não ser um gesto gentil. Abraçar em público não é recomendado. Não se vê pessoas em traje de banho, vôlei ou futebol, mesmo na praia, nem mesmo pessoas fazendo caminhada em calçadões. Não há bebida alcoólica e nas festas em casa se brinda com chá. Aqui o legal da festa é quando as mulheres dançam com um vaso na cabeça. É o nosso chão-chão-chão. O desafio é o da flexibilidade. Família é o grande valor deles e, as crianças, o futuro respeitadoEstou aprendendo tudo de novo. Falar, ouvir, entender, adaptar, aceitar, respeitar. Reaprender poderia ser um costume". Esse trecho escrevi na minha primeira semana em Trípoli: como diriam os Líbios, same-same-here, ou seja, "igual aqui", hoje. Reaprender é uma saída.

#2: Lutar entre desejos e regras.
Tive muita dificuldade para me adaptar à culinária local (carnes em banha, muita pimenta, arroz papado e com muita canela, meio doce) e na primeira refeição quase vomitei em cima da mesa, depois que tentei substituir um gosto de algo ruim por um suco. O suco era de cenoura com alguma coisa. A partir daquele dia passei a equalizar melhor expectativas com realidades: “Prepare-se para o pior. Espere o melhor. E aceite o que vier”. Provérbio Chinês

#3: Desenvolver a humildade. 
Escolher estar aberto para o que é novo ajusta o desequilíbrio. É igual a questão da alimentação. No início achava tudo péssimo, julgava comparativamente a uma realidade incomparável. Ao longo dos dias, passei a atribuir valor à vivência e permitir que se tornasse "melhor do que poderia ser", desapegando-me do imaginário. Escrevi à época: "O conceito de 'gostar' é mutável conforme você adquire bagagem cultural, seja através de viagens ou de leituras(...)". É preciso ter "humildade para observar pessoas e lugares reconhecidamente sofisticados e extrair deles a informação necessária para compor o seu próprio bom gosto." O capricho da simplicidade - Martha Medeiros.

#4: Você lê, você sente. 
Descubra o que te ajuda a fugir do que te aflige, já excluindo tudo aquilo que você não controla. Encontre a sua fuga, o que vai te desconectar das coisas que te prendem. Hoje existe a internet, à época, era um recurso escasso e instável. Sobre isso, refleti: "E na década de 80? Quem viajava para lugares tão longe estavam desconectados, viviam sentimentos sozinhos, mesmo quando não queriam". Hoje podemos não nos sentir sozinhos, mesmo que estejamos, fisicamente. Busque sua conexão. Uma reza. Uma música. Uma ligação. Um livro. Um poema. Uma mensagem. Ou um bilhete. Para você ou pr'outro alguém. Compartilhe. Só (se) lendo é que você poderá sentir.

#5 [Dois meses de Líbia]: A gente cresce é na adversidade.
Desde que você criou consciência sobre o corona vírus, o que você descobriu sobre si mesmo? Com dois meses de Líbia me caiu a ficha do autoconhecimento: "Uma equilibrada e honesta visão de sua própria personalidade e habilidade de interagir com as outras pessoas franca e confidencialmente". Saber se conhecer pela luz e pela sombra é libertador. Aceitamos. E então, agimos. 


#6: Tudo é sobre pessoas, pessoas e pessoas.
Refletindo sobre os aprendizados de trabalhar num país muçulmano, observei que os líbios valorizam o relacionamento, mais do que aumento de salário. Não era regra, mas o valor social do trabalho estava no "olho-no-olho" e nas palavras que revelavam o tom do tratamento: o bom tom. Fazendo um paralelo para hoje, com tantas relações profissionais se dando via home office, o que é que aflora da sua cultura organizacional? O que é valor de verdade?

#7: O isolamento é físico**. A aproximação continua sendo social.
Com quase três meses de Líbia fui buscar no dicionário o significado de Isolamento. E escrevi: "Isolamento [1 Ato de isolar. 2 Lugar onde se está isolado. 3 Socio Segregação espacial de indivíduos ou grupos em conseqüência de fatores geofísicos: distância, falta de meios de comunicação (...). 5 Estado do que está isolado de qualquer contato. Falta de comunicação devida à participação em hábitos e costumes diferentes (...)]". Michaelis. Que alívio pr'aquele momento e para esse que vivemos hoje: estamos separados fisicamente. Aproveitemos dos dispositivos digitais para nos aproximarmos. Reparem que fazíamos o contrário - nos isolávamos com os meios digitais quando estávamos fisicamente próximos. Finalmente, podemos inverter essa lógica.

#8: O sacrifício é ponto de vista. E de referencial privilegiado.
Pelo que você tem se sacrificado? Nos primeiros dias do Ramadã achei um absurdo tantas privações - sono, comida, trabalho - até que entendi que aquele mês existia pelo objetivo do sacrifício ser o de "focar no espírito das pessoas, abstendo-se de tudo aquilo que dê prazer corporal". Nesta #covid19, como uma privilegiada, eu não me sacrifico, porque há outros que se sacrificam, essencialmente, por falta de opção. Por eles está o ensinamento de que nosso foco deveria ser o espiritual. Deveria...

#9: O que importa é o dia-a-dia.
Para o Islamismo, o amanhã pertence a Alá (Deus). Por essa crença, os líbios vivem no encontro do medo com a superstição, sem planos, focados no dia-a-dia, tornando-se aos nossos olhos passivos e não comprometidos. Por outro lado, encaram, por exemplo, a morte e a doença de modo mais leve e aceitável, porque não se prepararam para acreditar no futuro. A vida é presente. E ser surpreendido é entender que foi feita a vontade de Deus: "Sou e não sou naquilo que estou sendo." Álvaro de Campos.

#10: A razão de ser é coletiva. 
A mentalidade de um líbio se soma por seu entendimento de tempo (passado, presente e futuro) - bem diferente do nosso; por seu conceito de atividade (aceitar) e por sua natureza de se render, em prol da harmonia, para não comprometer a imagem de sua família dentro da sociedade e, por fim, mas não menos importante, por todo e qualquer tipo de relacionamento: eles não agem individualmente, porque pensam em coletivo. Nestes dias, parafraseando a propaganda do Banco "O que o Santander pode fazer por você, hoje?" eu me pergunto: "O que eu posso fazer por alguém, hoje?". Que a resposta seja "rezar", mas que a atividade nos leve à natureza de nos rendermos a algo maior do que nós mesmos.

#11: O que era já pode não ser mais. 
Com um pouco mais de três meses morando em Tripoli, consegui uma autorização do Governo para sair e retornar ao país. Tirei 20 dias de folga. À época, escrevi: "Me convenço de que é incrível viver tudo isso e pensar que, Inshallah, em uma semana voltarei a ver o ar transparente, sem ser caramelo-creme, carros de variadas cores e não brancos em sua maioria, lixeiras pelas ruas, ventos que não trazem areia, bebida alcoólica e carne de porco, pessoas a namorar pelas ruas, corridas em parques e diálogos naturais entre pessoas do sexo oposto. Ah, parques! Correr respirando um ar que, mesmo impuro, não revela cheiro de areia quando a gente passa, não arranha os olhos e nem resseca a pele. Resta saber como vou reagir ao rever o já visto sob novas perspectivas". 

#12: A falta que mais faz falta.
Apesar da lista de desejos anteriores, segundo os meus diários, o que eu mais gostei de rever não foi o exatamente "rever". Foi sentir: "Abraço: Ato de abraçar. Abraçar: 1 Apertar(-se), cingir(-se) com os braços (...); 3. Admitir, adotar, seguir; 4 Juntar(-se), unir(-se) (...); 7 Admitir sem repugnância, receber bem". Michaelis. A nossa falta essencial é humana.

Eu provavelmente poderia listar outros aprendizados, mas acho que esses resumem bem alternativas sobre como podemos passar por esse momento de maneira saudável. Eu não sou mãe, então não abordei aprendizados especificamente relacionados a mater/paternidade - tenho por hábito não me apropriar de um discurso que não é meu, porque meu foco de aprendizagem está a partir das minhas próprias experiências. Sinto muito - mesmo! - se não os ajuda tanto. De todo modo, vou compartilhar passagens que me ajudaram e me ajudam muito, quando minhas autoexplorações não são suficientes. Independentemente do cenário de cada um, acredito que são universais, porque conversam com essas faltas a que atribuo serem essencialmente humanas, em momentos como os de dez anos atrás, os de hoje e talvez de sempre:

#13: E se o nada for tudo?
  • "Inquietação é descontentamento, e descontentamento é a primeira necessidade do progresso". Thomas Edison
  • "O tempo e o espaço são modos pelos quais pensamos e não condições nas quais vivemos." Albert Einstein. 
  • "(...) Você é o que você pensa. As suas emoções são escravas dos seus pensamentos, e você é escravo de suas emoções. (...) Quatro virtudes de que uma pessoa necessita para ter segurança e felicidade na vida: inteligência, amizade, força e (adoro essa parte) poesia". Elizabeth Gilbert*** 
  • "(...) E foste um difícil começo /Afasto o que não conheço / E quem vende outro sonho feliz de cidade / Aprende depressa a chamar-te de realidade / Porque és o avesso do avesso do avesso do avesso(...)". Caetano Veloso.
"Se você tem coragem de deixar para trás tudo que lhe é familiar e confortável (pode ser qualquer coisa, desde a sua casa aos seus antigos ressentimentos) e embarcar numa jornada em busca da verdade (para dentro ou para fora), e se você tem mesmo a vontade de considerar tudo o que acontece nessa jornada como uma pista, e se você aceitar cada um que encontre no caminho como professor, e se estiver preparada, acima de tudo, para encarar (e perdoar) algumas realidades bem difíceis sobre você mesma... então a verdade não lhe será negada". ***Elizabeth Gilbert.

#14: Encare-se.
Ao longo dos 18 meses na Líbia peguei algumas tempestades de areia****. Primeiro tive muito medo, até que me vi passando por elas cada vez melhor, como [Franz] Kafka:

"Às vezes, o destino é como uma tempestade de areia que o faz mudar de direção. Você pode tomar outro caminho, mas o fenômeno o atrapalha. Você volta a mudar de rumo, mas a intempérie o desvia novamente. Ela brinca por cima de você como uma agourenta dança com a morte pouco antes da aurora. Por quê? Porque a tempestade não é algo que sopra longe, algo que não tem nada a ver com você. Essa tempestade é você. É algo dentro de você. Assim, tudo o que se pode fazer é render-se a ela, andar a passos firmes em meio a ela, fechando os olhos e protegendo os ouvidos, e caminhar através dela, um passo de cada vez. Dentro da tempestade não brilha o sol nem a lua, não há direção nem sensação de tempo. Só há a fina e branca areia fazendo redemoinhos para o céu como ossos pulverizados. [...]. E, uma vez amainada a tempestade, você não se lembrará de como se livrou dela, de como conseguiu sobreviver. Na verdade, não terá certeza de que a tempestade realmente cessou. Mas uma coisa é certa: quando sair da tempestade, você já não será mais o mesmo que caminhou por dentro dela. Essa é a essência da tempestade".


Minha 1a. tempestade de areia. Março 2009. Trípoli, Líbia.


*Caso você não tenha contexto Histórico: A Líbia era um dos países mais fechados do mundo naquela época e era restrita a circulação de pessoas nas ruas, principalmente mulheres, solteiras e ocidentais: todinha eu! Não podíamos sair de casa, mesmo. E, ah, lembre-se. Quase não havia sinal de internet :)
** ref. sociólogo Ben Carrington e Eliane Brum, 2020.***Elizabeth Gilbert, Comer Rezar Amar.
****Quando acontece a tempestade de areia, você não pode fazer nada nada nada. Apenas se proteger, com tudo fechado, e esperar passar.

quinta-feira, 23 de maio de 2019

A saga do planejamento: planejar está em tudo - e em nada

"A vida, afinal, é a melhor escola que existe". O menino do dedo verde, Maurice Druon

Esses dias eu 'tava no Rio de Janeiro para facilitar um treinamento sobre Carreira/Protagonismo e n'uma conversa com um dos grupos, falei sobre nossa dificuldade em não só acreditar que temos algum controle sobre a vida, mas em desapegarmos pragmaticamente de que apesar do planejamento, a vida acontece e que, ocidentalmente, não fomos educados a frustração de não nos realizarmos do jeito que gostaríamos - e como acabamos nos consumindo por uma dor sobre a qual temos pouca 
interferência, a não ser, vivê-la e deixá-la passar.

Particularmente depois dessa conversa, terminei a aula, fui para o aeroporto do Santos Dumont. Meu vôo havia sido cancelado pela agência. Liguei e eles reemitiram outra passagem no mesmo horário: SDU-CGH, 21:15. Tentei antecipar, porque isso era 19h. Haveria multa. Me recusei. Aceitei que deveria esperar as duas horas quando, às 20:20, vi no portão ao lado: "Congonhas, 20:40, última chamada". Me aproximei do balcão e falei com o atendente "Meu voo é o próximo, posso ir nesse?". Ele, gentilmente, concedeu, sem me cobrar a taxa.

Eu estava muito feliz, tinha planos, queria ver uma amiga de BH que "me esperava" em SP; e uma outra de Curitiba que me pegaria em Congonhas para ganharmos tempo e irmos nos atualizando ainda no caminho.

Decolamos. A previsão de pouso era 21:51. Passou para 21:54. 21:58. 22:04. Quando chegou a 22:14, apontado pelo monitor do avião, comecei a me preocupar. O piloto finalmente deu satisfação:
- Senhores passageiros, aqui quem fala é o comandante. Estamos longe ainda de São Paulo, porque fomos informados que as condições meteorológicas não são boas e que é recomendável ficarmos afastados da região aeroportuária. Sigo em órbita por aqui para avaliarmos se as condições melhoram, e volto em breve com mais informações. Pela atenção, obrigado".

Detesto voar. E já voei muito. Muito. Longos e curtos voos. Mas isso nunca tinha me acontecido. Intensifiquei a oração e pensei "Ok, pousaremos em Guarulhos - 'tá de boa!'".

Uns dez minutos depois, ele retorna:
- Senhores passageiros, aqui quem fala é o comandante, novamente. Sinto informar, mas não temos condição de pouso em São Paulo, em quaisquer dos aeroportos da região. Lamento informar, mas estamos voltando para o Rio de Janeiro, aeroporto do Santos Dumont, e em terra volto com mais informações. Pela atenção obrigado, tripulação, preparar para o pouso.

Gente. Sério. Primeiro que não entendi - já íamos pousar no Rio? Segundo. PelamordeDeus, quero só chegar nesse "em terra" aí.

Pousamos com segurança e tranquilidade; desembarcamos, pegamos ônibus e fila. Passava das 22:30 e o Santos Dumont, assim como Congonhas, pára de operar às 23 horas. Não haveria tempo hábil para remanejamento de nova aeronave - a nossa não poderia mais voar no dia (#vaisaber). 

Ao entrar na fila do balcão da cia aérea, a atendente pediu meu cartão de embarque (como antecipei o vôo, o papel que eu havia recebido eu havia jogado fora no avião - porque, né? Para quê guardar lixo? #lembranças do dia que fui, mas voltei?).
Enfim, ela então pediu o cartão de embarque eletrônico, do meu vôo original. Eu havia deletado, afinal, fiquei entediada zanzando mais de meia hora no ar - aproveitei para fazer a limpa no álbum de fotos-lixo. 

Com um certo desconforto, do tipo "ah nem! Mais essa?", consegui o voucher de táxi para o hotel, o voucher da hospedagem no tal hotel, o voucher de volta hotel-aeroporto para o dia seguinte - sábado.

Fiquei um tempo frustrada, não muito, porque rapidamente:
- agradeci por termos pousado em segurança, mesmo que não em Congonhas;
- agradeci por não ter perdido nenhum compromisso único (casamento, aniversário, nascimento, velório, ou algo importante relacionado a trabalho);
- "empatizei" quando pensei, então, quantas pessoas tinham motivos reais para estarem tristes, chateadas e/ou frustradas - não só as do voo, mas as atendentes da cia aérea que tinham planos pr'aquela sexta-feira à noite e tiveram que fazer hora extra, sob pressão, para endereçar centenas de passageiros nos seus (novos) destinos - e aguentar o infeliz comportamento desrespeitoso e agressivo de vários deles: uma pena!;
"empatizei" com os funcionários do hotel que, achando que estavam liberados do exaustivo turno, foram comunicados de que centenas de pessoas chegariam para jantar e dormir - e tomar café da manhã e, por fim;
- "enquanto uns choram, outros vendem lenço": a alegria dos taxistas no Santos Dumont! Em uma hora de Congonhas fechado, onze vôos foram cancelados: os caras estavam radiantes com o volume de passageiro na fila, com o voucher na mão.

Aí, te pergunto: O meu planejamento ter dado errado - e também para outras tantas pessoas, direta ou indiretamente - foi "azar", ou "sorte"? E, então, afinal, estamos mesmo a serviço de quem?


PS: Voei no sábado às 8:20 da manhã - com um leve atraso: saímos 8:40 - e na Graça de Deus, mesmo com chuva no Rio e em São Paulo, pousamos bem em Congonhas. Como diria Chico Pinheiro, #évidaquesegue.

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2019

Sério. Uma história simplesmente incrível. Ou incrivelmente simples.

"Pensa como pensam os sábios, mas fala como falam as pessoas simples". Aristóteles
Sábado depois da academia fui dar uma volta pelo bairro de Pinheiros em busca de placas de "aluga-se" em prédios residenciais, para ajudar uma amiga minha que está de mudança para Sampa.
Num determinado edifício, toquei o interfone, o porteiro atendeu:
- Boa tarde!
- Boa tarde! O senhor sabe me dizer quanto é esse aluguel ou se tem algum telefone com quem eu possa falar?
- Olha, antes disso, você pode me ajudar?
(Na hora eu imaginei que ele estava sendo assaltado ou que estava passando mal, travei)
- Como, senhor?
- É que eu preciso de ajuda. Você pode me ajudar? Eu abro para você!
(Eu continuava sem entender, continuava com medo, mas entrei).

Fiquei na escada; ele dentro daquelas cabines. Logo, abriu a porta e disse:
- Entra aqui. Eu preciso fazer um negócio faz horas, mas sou muito burro.

O senhorzinho tremia, os olhos estavam marejados, ele parecia mesmo desesperado. Entrei, mantendo a porta da cabine aberta (#medodeassédio #loka #seilá) e disse:
- Como te ajudo, moço?
- Ai dona, sou tão burro. Eu sou muito burro. Eu preciso tirar foto desse papel que está na parede e mandar para a dona Márcia. Pelo whatsapp!

Gente, coisa linda! Fui, passo-a-passo:
1. Desbloqueia o celular, assim, o senhor sabe? E ele disse: "Não, sou tão burro!".
2. 'Tá vendo o iconezinho dessa câmera? Clica nele. E repetiu: "Ai, sou tão burro!".
3. Mira no papel que está na parede e aperta esse círculo branco aqui, pronto. Você já tem a foto do papel. "Nossa! Como sou burro!".

Não dava mais. Interrompi:
- Olha, não fala que você é burro, ok?
- Mas eu sou burro, dona! A dona Márcia me pediu isso cedo, não sei nada. Não sei mexer. Eu só sei do whatsapp. Mas eu clicava no whatsapp e pensava: "E a foto? Nunca tirei foto para mandar pelo whatsapp"!
Eu apenas disse:
- Tudo bem! Ninguém sabe tudo. O importante é você querer aprender e, você vai ver, não vai mais esquecer. Confia. Logo logo você vai tirar muitas fotos e mandar para as pessoas. Fica calmo e acredita que você não é burro tá? Todos nós só não sabemos de alguma coisa e por isso seguimos aprendendo tanto todos os dias. Todos os dias vivemos algo pela primeira vez, certo?

Nesse momento, ele apertou "enviar" e a imagem foi para a "dona Márcia". Ele sorriu, o bigode dele se espalhou pela boca, chegando quase às orelhas. Os olhos brilharam e ele disse:
- Você devia ser professora. Eu não sou burro. Mas você também sabe ensinar.
- E você sabe aprender.

Esse momento encheu meu coração pelo dia. Por ter feito algo tão simples e tão grande. Fiquei só me perguntando porque o sr. Walter não teve coragem de dizer a dona Márcia que ele não sabia fazer o que ela pediu: Intimidação? Vergonha?

Que todos nós possamos perguntar, para que vejamos nosso potencial em aprender. E que possamos nos arriscar, para que possamos ensinar; reaprendendo.

"A dúvida é o princípio da sabedoria". Aristóteles

quarta-feira, 21 de novembro de 2018

#enegrecernossoviés

Eu me mudei dentro da cidade de São Paulo umas cinco vezes já, entre idas e vindas que somam sete anos. Em 2013, quando vim em "definitivo", me mudei de um prédio mais simples para um com mais regras, vamos assim dizer.

Era eu, e dois amigos. Na divisão das tarefas, fiquei responsável por articular o descarte de lixo e dos infinitos papelões que os carretos conseguem multiplicar em tempo recorde!

Fui até a garagem e, apesar das plaquinhas-sinalizadoras, me pareceu estranho deixar aquele entulho todo que tínhamos ali, afinal, havíamos recebido insistentemente a informação "aqui tudo dá multa", "aqui nada pode", "aqui o síndico (...)", "aqui, na dúvida, pergunte para o zelador (...)"; e aquilo tudo era muito novo para mim, porque apesar de ser a sétima (?) moradia diferente pela qual eu passava, nenhuma das anteriores havia me alertado tanto sobre "do's and don'ts".

Saí da garagem e fui até a portaria. O porteiro disse: "Não posso sair da portaria. Você precisa esperar alguém do prédio (?) chegar para te explicar como funciona esse tipo de descarte".

Sentei. E esperei.

Eis que sai do elevador uma senhora, negra, de chinelos, cabelos grisalhos, curtos, encaracolados, camiseta surrada, bermuda. 

Pensei: deve ser a faxineira, ela deve saber.

- Olá, bom dia! Desculpa incomodá-la, mas estou me mudando para o prédio hoje e estou com dificuldade de entender os procedimentos corretos de descarte de lixo e afins.
- Seja muito bem-vinda, vamos lá! Eu te explico!

Depois do tour que durou alguns minutos, ao agradecê-la, quando eu ia perguntar "a senhora trabalha aqui?", ela disse:
- Conta comigo para o que precisar: sou subsíndica, moro no ap ...
Aquelas palavras me dão nó na garganta até hoje: como pude ser tão babaca? Me lembro que só silenciei, deixei meus olhos marejarem, mas não consegui pedir desculpas, não consegui lidar com o que fui entender só hoje, cinco anos depois, que eu era - sou (?) - uma racista cordial.
Em fração de segundos eu sentia raiva de mim mesma, injustiça e ficava sem saber se eu a abraçava, se pedia desculpas, se dizia a ela o que eu havia pensado a respeito, que caos! Que difícil foi ter consciência do meu viés, logo eu, tão pró direitos humanos, pró cidadania, pró tudo que viole direitos de qualquer pessoa.

Se existe um lado bom desse episódio do qual eu me envergonho é o de que passei a ter consciência desse "automático" a que fomos condicionados e que faz tudo parecer ser justificável. Não, não faz. Nada justifica essas atrocidades que cometemos, "quase sem querer". Precisamos mudar Precisamos reagir. Precisamos sentir. Precisamos verdadeiramente nos relacionar.

Entender que a segregação a que os negros são impostos os afeta de maneira desproporcional e injusta* não basta. Enquanto nos colocarmos n'algum lugar de desigualdade, a cordialidade será em vão, porque não é uma questão de ser #fofa e #querida, é uma questão de ser justa e de combater, em cada um de nós, essa discriminação velada.

*Fala de Sueli Carneiro no evento da ThoughtWorks SP, Nov/2018. Sueli é filósofa, escritora e ativista antirracismo do movimento social negro brasileiro. Fundadora do Geledés — Instituto da Mulher Negra e considerada uma das principais autoras do feminismo negro no Brasil.


terça-feira, 6 de novembro de 2018

Da (não) escuta

"Não basta o silêncio de fora. É preciso silêncio dentro. Ausência de pensamentos. E aí, quando se faz o silêncio dentro, a gente começa a ouvir coisas que não ouvia (...). Para mim, Deus é isto: A beleza que se ouve no silêncio. Daí a importância de saber ouvir os outros: A beleza mora lá também". O amor que acende a  lua - Rubem Alves

- Olá, bom dia!
(Silêncio)
- Me vê uma sacolinha, por favor? 
(Silêncio)
- Algo mais, senhora?
- Sim, uma sacolinha por favor e pode fechar. No débito.
- Algo mais, senhora?
- Não, obrigada!
- Forma de pagamento?
- Débito, por favor.
- Crédito? Pode colocar a senha (...).

- Gente, tô amando a novela!
- Num é menina! 
- Aquela Sorrah tá ótima de maluca!
- Sim! E o lance das galinhas? Ela penteando galinhas!
(Todas riem)
- E o marido dela?
- Marido de quem gente?
- Da maluca!
- Da Renata Sorrah?
- Isso!
- Não sei quem é. 
- O Remy.
- Não. Ela acha que o Remy é o Nestor, mas ele não é marido dela 🙄.
- Tô falando na vida real!
- Mas na vida real o "Remy" é casado com a Laureta, que é a Adriana Esteves.
- Pois é, então. 
- Então?
- Adoro os dois!
- A Adriana Esteves e o Vladmir Brichta?
- Essa Sorrah! Como é mesmo o nome dela?
(...)

- Bom dia! Tenho uma reunião agora às 10h com a Fulana, do lugar A, 13o andar.
- Bom dia! Tem cadastro?
- Sim!
- Seu RG, por favor, senhora?
- Um, dois, três, quatro, cinco, dígito sete.
- Não entrou senhora, tem certeza?
- Certeza do meu RG ou certeza se tenho cadastro?
- Isso.
- Bom, quer tentar de novo o número?
- Pode ser. 
- (bem devagar, pau sa da mente) Um. dois. três. quatro. cinco. dígito sete.
- Ahhhhhhh. Dígito sete.
(Silêncio).
- Para onde a senhora vai, dona Bárbara?
- Lugar A, 13o andar.
- Motivo da visita?
- Reunião.
- Com quem? 
- Fulana.
- Ok.
(Ligando).
(Interrompendo).
- Senhora Bárbara?
- Oi!
- Essa reunião está marcada para que horas?
- Para as 10 horas.
(volta a ligação e repete: "para as 10 horas").
- Senhora Bárbara?
- Oi!!
- A senhora tem algum contato lá?
(...)


"Não é bastante ter ouvidos para ouvir o que é dito". Estamos todos surdos dos nossos barulhos :|
*Não adesão à nova regra gramatical.