segunda-feira, 30 de março de 2020

Lifelong learning real: O que ter morado na Líbia há 10 anos me ensina hoje

"Sei lá, sei lá, só sei que é preciso paixão.
Sei lá, sei lá, a vida tem sempre razão".
Toquinho e Vinícius

Morei por um ano e meio na Líbia*, no Norte da África, entre Janeiro de 2009 e Junho de 2010. Saí um pouco antes de eclodir a Primavera-Árabe, vivendo os últimos anos da ditadura do Khadafi. Ao longo desse período, ia da casa-para-o-trabalho-e-vice-e-versa, e só

Pouco consciente de que aquela experiência me traria aprendizados para toda a vida (#lifelong learning), instintivamente estabeleci para mim duas premissas de sobrevivência: estar ali naquela condição teria uma razão superior à qual eu pudesse imaginar e era preciso, de alguma forma, vivenciar alguma das minhas paixões - e foi assim que passei a escrever semanalmente como válvula de escape para mim e para me sentir minimamente conectada aos meus amigos e familiares. 

Escrever virou um hábito por muitos anos e publicar as reflexões também - que estão aqui no blog e condensadas neste meu livro lançado em 2018, Sem medo, sem rumo.

Semana passada, durante minha sessão de terapia online, minha terapeuta perguntou:
- Como você tá com essa história toda do Corona?
E eu respondi:
- Estou bem, muito bem! 

E eu estava mesmo. Sem pensar, complementei:
- Morei na Líbia, né? Um ano e meio confinada. Isso aqui 'tá tranquilo'.

Naquele instante não dei conta das minhas palavras, mas hoje, uma semana depois, essa fala reverbera em mim diariamente, e por isso decidi compartilhar com vocês o que aprendi há 10 anos e que resulta no meu equilíbrio atual para lidar com o #covid19, hoje. Talvez sirva para você, talvez não. Mas eu realmente espero que sirva pr'alguma coisa:

Aprendizado #1 [com 1 semana de Líbia]: Reaprender poderia ser um costume.
"Dar a mão ao outro pode não ser um gesto gentil. Abraçar em público não é recomendado. Não se vê pessoas em traje de banho, vôlei ou futebol, mesmo na praia, nem mesmo pessoas fazendo caminhada em calçadões. Não há bebida alcoólica e nas festas em casa se brinda com chá. Aqui o legal da festa é quando as mulheres dançam com um vaso na cabeça. É o nosso chão-chão-chão. O desafio é o da flexibilidade. Família é o grande valor deles e, as crianças, o futuro respeitadoEstou aprendendo tudo de novo. Falar, ouvir, entender, adaptar, aceitar, respeitar. Reaprender poderia ser um costume". Esse trecho escrevi na minha primeira semana em Trípoli: como diriam os Líbios, same-same-here, ou seja, "igual aqui", hoje. Reaprender é uma saída.

#2: Lutar entre desejos e regras.
Tive muita dificuldade para me adaptar à culinária local (carnes em banha, muita pimenta, arroz papado e com muita canela, meio doce) e na primeira refeição quase vomitei em cima da mesa, depois que tentei substituir um gosto de algo ruim por um suco. O suco era de cenoura com alguma coisa. A partir daquele dia passei a equalizar melhor expectativas com realidades: “Prepare-se para o pior. Espere o melhor. E aceite o que vier”. Provérbio Chinês

#3: Desenvolver a humildade. 
Escolher estar aberto para o que é novo ajusta o desequilíbrio. É igual a questão da alimentação. No início achava tudo péssimo, julgava comparativamente a uma realidade incomparável. Ao longo dos dias, passei a atribuir valor à vivência e permitir que se tornasse "melhor do que poderia ser", desapegando-me do imaginário. Escrevi à época: "O conceito de 'gostar' é mutável conforme você adquire bagagem cultural, seja através de viagens ou de leituras(...)". É preciso ter "humildade para observar pessoas e lugares reconhecidamente sofisticados e extrair deles a informação necessária para compor o seu próprio bom gosto." O capricho da simplicidade - Martha Medeiros.

#4: Você lê, você sente. 
Descubra o que te ajuda a fugir do que te aflige, já excluindo tudo aquilo que você não controla. Encontre a sua fuga, o que vai te desconectar das coisas que te prendem. Hoje existe a internet, à época, era um recurso escasso e instável. Sobre isso, refleti: "E na década de 80? Quem viajava para lugares tão longe estavam desconectados, viviam sentimentos sozinhos, mesmo quando não queriam". Hoje podemos não nos sentir sozinhos, mesmo que estejamos, fisicamente. Busque sua conexão. Uma reza. Uma música. Uma ligação. Um livro. Um poema. Uma mensagem. Ou um bilhete. Para você ou pr'outro alguém. Compartilhe. Só (se) lendo é que você poderá sentir.

#5 [Dois meses de Líbia]: A gente cresce é na adversidade.
Desde que você criou consciência sobre o corona vírus, o que você descobriu sobre si mesmo? Com dois meses de Líbia me caiu a ficha do autoconhecimento: "Uma equilibrada e honesta visão de sua própria personalidade e habilidade de interagir com as outras pessoas franca e confidencialmente". Saber se conhecer pela luz e pela sombra é libertador. Aceitamos. E então, agimos. 


#6: Tudo é sobre pessoas, pessoas e pessoas.
Refletindo sobre os aprendizados de trabalhar num país muçulmano, observei que os líbios valorizam o relacionamento, mais do que aumento de salário. Não era regra, mas o valor social do trabalho estava no "olho-no-olho" e nas palavras que revelavam o tom do tratamento: o bom tom. Fazendo um paralelo para hoje, com tantas relações profissionais se dando via home office, o que é que aflora da sua cultura organizacional? O que é valor de verdade?

#7: O isolamento é físico**. A aproximação continua sendo social.
Com quase três meses de Líbia fui buscar no dicionário o significado de Isolamento. E escrevi: "Isolamento [1 Ato de isolar. 2 Lugar onde se está isolado. 3 Socio Segregação espacial de indivíduos ou grupos em conseqüência de fatores geofísicos: distância, falta de meios de comunicação (...). 5 Estado do que está isolado de qualquer contato. Falta de comunicação devida à participação em hábitos e costumes diferentes (...)]". Michaelis. Que alívio pr'aquele momento e para esse que vivemos hoje: estamos separados fisicamente. Aproveitemos dos dispositivos digitais para nos aproximarmos. Reparem que fazíamos o contrário - nos isolávamos com os meios digitais quando estávamos fisicamente próximos. Finalmente, podemos inverter essa lógica.

#8: O sacrifício é ponto de vista. E de referencial privilegiado.
Pelo que você tem se sacrificado? Nos primeiros dias do Ramadã achei um absurdo tantas privações - sono, comida, trabalho - até que entendi que aquele mês existia pelo objetivo do sacrifício ser o de "focar no espírito das pessoas, abstendo-se de tudo aquilo que dê prazer corporal". Nesta #covid19, como uma privilegiada, eu não me sacrifico, porque há outros que se sacrificam, essencialmente, por falta de opção. Por eles está o ensinamento de que nosso foco deveria ser o espiritual. Deveria...

#9: O que importa é o dia-a-dia.
Para o Islamismo, o amanhã pertence a Alá (Deus). Por essa crença, os líbios vivem no encontro do medo com a superstição, sem planos, focados no dia-a-dia, tornando-se aos nossos olhos passivos e não comprometidos. Por outro lado, encaram, por exemplo, a morte e a doença de modo mais leve e aceitável, porque não se prepararam para acreditar no futuro. A vida é presente. E ser surpreendido é entender que foi feita a vontade de Deus: "Sou e não sou naquilo que estou sendo." Álvaro de Campos.

#10: A razão de ser é coletiva. 
A mentalidade de um líbio se soma por seu entendimento de tempo (passado, presente e futuro) - bem diferente do nosso; por seu conceito de atividade (aceitar) e por sua natureza de se render, em prol da harmonia, para não comprometer a imagem de sua família dentro da sociedade e, por fim, mas não menos importante, por todo e qualquer tipo de relacionamento: eles não agem individualmente, porque pensam em coletivo. Nestes dias, parafraseando a propaganda do Banco "O que o Santander pode fazer por você, hoje?" eu me pergunto: "O que eu posso fazer por alguém, hoje?". Que a resposta seja "rezar", mas que a atividade nos leve à natureza de nos rendermos a algo maior do que nós mesmos.

#11: O que era já pode não ser mais. 
Com um pouco mais de três meses morando em Tripoli, consegui uma autorização do Governo para sair e retornar ao país. Tirei 20 dias de folga. À época, escrevi: "Me convenço de que é incrível viver tudo isso e pensar que, Inshallah, em uma semana voltarei a ver o ar transparente, sem ser caramelo-creme, carros de variadas cores e não brancos em sua maioria, lixeiras pelas ruas, ventos que não trazem areia, bebida alcoólica e carne de porco, pessoas a namorar pelas ruas, corridas em parques e diálogos naturais entre pessoas do sexo oposto. Ah, parques! Correr respirando um ar que, mesmo impuro, não revela cheiro de areia quando a gente passa, não arranha os olhos e nem resseca a pele. Resta saber como vou reagir ao rever o já visto sob novas perspectivas". 

#12: A falta que mais faz falta.
Apesar da lista de desejos anteriores, segundo os meus diários, o que eu mais gostei de rever não foi o exatamente "rever". Foi sentir: "Abraço: Ato de abraçar. Abraçar: 1 Apertar(-se), cingir(-se) com os braços (...); 3. Admitir, adotar, seguir; 4 Juntar(-se), unir(-se) (...); 7 Admitir sem repugnância, receber bem". Michaelis. A nossa falta essencial é humana.

Eu provavelmente poderia listar outros aprendizados, mas acho que esses resumem bem alternativas sobre como podemos passar por esse momento de maneira saudável. Eu não sou mãe, então não abordei aprendizados especificamente relacionados a mater/paternidade - tenho por hábito não me apropriar de um discurso que não é meu, porque meu foco de aprendizagem está a partir das minhas próprias experiências. Sinto muito - mesmo! - se não os ajuda tanto. De todo modo, vou compartilhar passagens que me ajudaram e me ajudam muito, quando minhas autoexplorações não são suficientes. Independentemente do cenário de cada um, acredito que são universais, porque conversam com essas faltas a que atribuo serem essencialmente humanas, em momentos como os de dez anos atrás, os de hoje e talvez de sempre:

#13: E se o nada for tudo?
  • "Inquietação é descontentamento, e descontentamento é a primeira necessidade do progresso". Thomas Edison
  • "O tempo e o espaço são modos pelos quais pensamos e não condições nas quais vivemos." Albert Einstein. 
  • "(...) Você é o que você pensa. As suas emoções são escravas dos seus pensamentos, e você é escravo de suas emoções. (...) Quatro virtudes de que uma pessoa necessita para ter segurança e felicidade na vida: inteligência, amizade, força e (adoro essa parte) poesia". Elizabeth Gilbert*** 
  • "(...) E foste um difícil começo /Afasto o que não conheço / E quem vende outro sonho feliz de cidade / Aprende depressa a chamar-te de realidade / Porque és o avesso do avesso do avesso do avesso(...)". Caetano Veloso.
"Se você tem coragem de deixar para trás tudo que lhe é familiar e confortável (pode ser qualquer coisa, desde a sua casa aos seus antigos ressentimentos) e embarcar numa jornada em busca da verdade (para dentro ou para fora), e se você tem mesmo a vontade de considerar tudo o que acontece nessa jornada como uma pista, e se você aceitar cada um que encontre no caminho como professor, e se estiver preparada, acima de tudo, para encarar (e perdoar) algumas realidades bem difíceis sobre você mesma... então a verdade não lhe será negada". ***Elizabeth Gilbert.

#14: Encare-se.
Ao longo dos 18 meses na Líbia peguei algumas tempestades de areia****. Primeiro tive muito medo, até que me vi passando por elas cada vez melhor, como [Franz] Kafka:

"Às vezes, o destino é como uma tempestade de areia que o faz mudar de direção. Você pode tomar outro caminho, mas o fenômeno o atrapalha. Você volta a mudar de rumo, mas a intempérie o desvia novamente. Ela brinca por cima de você como uma agourenta dança com a morte pouco antes da aurora. Por quê? Porque a tempestade não é algo que sopra longe, algo que não tem nada a ver com você. Essa tempestade é você. É algo dentro de você. Assim, tudo o que se pode fazer é render-se a ela, andar a passos firmes em meio a ela, fechando os olhos e protegendo os ouvidos, e caminhar através dela, um passo de cada vez. Dentro da tempestade não brilha o sol nem a lua, não há direção nem sensação de tempo. Só há a fina e branca areia fazendo redemoinhos para o céu como ossos pulverizados. [...]. E, uma vez amainada a tempestade, você não se lembrará de como se livrou dela, de como conseguiu sobreviver. Na verdade, não terá certeza de que a tempestade realmente cessou. Mas uma coisa é certa: quando sair da tempestade, você já não será mais o mesmo que caminhou por dentro dela. Essa é a essência da tempestade".


Minha 1a. tempestade de areia. Março 2009. Trípoli, Líbia.


*Caso você não tenha contexto Histórico: A Líbia era um dos países mais fechados do mundo naquela época e era restrita a circulação de pessoas nas ruas, principalmente mulheres, solteiras e ocidentais: todinha eu! Não podíamos sair de casa, mesmo. E, ah, lembre-se. Quase não havia sinal de internet :)
** ref. sociólogo Ben Carrington e Eliane Brum, 2020.***Elizabeth Gilbert, Comer Rezar Amar.
****Quando acontece a tempestade de areia, você não pode fazer nada nada nada. Apenas se proteger, com tudo fechado, e esperar passar.

Um comentário:

Lina disse...

Querida Luciana
Obrigada por compartilhar conosco sua experiência na Líbia.
Parabens. ADOREI.
Vc escreveu um livro sobre isso ou entendi mal.
Abs

*Não adesão à nova regra gramatical.