Eu me mudei dentro da cidade de São Paulo umas cinco vezes já, entre idas e vindas que somam sete anos. Em 2013, quando vim em "definitivo", me mudei de um prédio mais simples para um com mais regras, vamos assim dizer.
Era eu, e dois amigos. Na divisão das tarefas, fiquei responsável por articular o descarte de lixo e dos infinitos papelões que os carretos conseguem multiplicar em tempo recorde!
Fui até a garagem e, apesar das plaquinhas-sinalizadoras, me pareceu estranho deixar aquele entulho todo que tínhamos ali, afinal, havíamos recebido insistentemente a informação "aqui tudo dá multa", "aqui nada pode", "aqui o síndico (...)", "aqui, na dúvida, pergunte para o zelador (...)"; e aquilo tudo era muito novo para mim, porque apesar de ser a sétima (?) moradia diferente pela qual eu passava, nenhuma das anteriores havia me alertado tanto sobre "do's and don'ts".
Saí da garagem e fui até a portaria. O porteiro disse: "Não posso sair da portaria. Você precisa esperar alguém do prédio (?) chegar para te explicar como funciona esse tipo de descarte".
Sentei. E esperei.
Eis que sai do elevador uma senhora, negra, de chinelos, cabelos grisalhos, curtos, encaracolados, camiseta surrada, bermuda.
Pensei: deve ser a faxineira, ela deve saber.
- Olá, bom dia! Desculpa incomodá-la, mas estou me mudando para o prédio hoje e estou com dificuldade de entender os procedimentos corretos de descarte de lixo e afins.
- Seja muito bem-vinda, vamos lá! Eu te explico!
Depois do tour que durou alguns minutos, ao agradecê-la, quando eu ia perguntar "a senhora trabalha aqui?", ela disse:
- Conta comigo para o que precisar: sou subsíndica, moro no ap ...
Aquelas palavras me dão nó na garganta até hoje: como pude ser tão babaca? Me lembro que só silenciei, deixei meus olhos marejarem, mas não consegui pedir desculpas, não consegui lidar com o que fui entender só hoje, cinco anos depois, que eu era - sou (?) - uma racista cordial.
Em fração de segundos eu sentia raiva de mim mesma, injustiça e ficava sem saber se eu a abraçava, se pedia desculpas, se dizia a ela o que eu havia pensado a respeito, que caos! Que difícil foi ter consciência do meu viés, logo eu, tão pró direitos humanos, pró cidadania, pró tudo que viole direitos de qualquer pessoa.
Se existe um lado bom desse episódio do qual eu me envergonho é o de que passei a ter consciência desse "automático" a que fomos condicionados e que faz tudo parecer ser justificável. Não, não faz. Nada justifica essas atrocidades que cometemos, "quase sem querer". Precisamos mudar Precisamos reagir. Precisamos sentir. Precisamos verdadeiramente nos relacionar.
Entender que a segregação a que os negros são impostos os afeta de maneira desproporcional e injusta* não basta. Enquanto nos colocarmos n'algum lugar de desigualdade, a cordialidade será em vão, porque não é uma questão de ser #fofa e #querida, é uma questão de ser justa e de combater, em cada um de nós, essa discriminação velada.
*Fala de Sueli Carneiro no evento da ThoughtWorks SP, Nov/2018. Sueli é filósofa, escritora e ativista antirracismo do movimento social negro brasileiro. Fundadora do Geledés — Instituto da Mulher Negra e considerada uma das principais autoras do feminismo negro no Brasil.
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