O curioso e dolorido prazer de resgatar experiências registradas pela memória dos sentidos.
Há pouco mais de dois anos eu pedi demissão: e naquele momento a minha intenção era fazer um sabático pelo sudeste asiático. Antes dele veio o Carnaval e ali na quarta-feira de cinzas tudo mudou. Lembro de sentir uma palpitação curiosa depois de receber um telefonema. Corri para o computador e naveguei por horas pela internet, viajando, quase que literalmente.
Pouco menos de um mês depois, eu trocava a quase emitida Passagem de Volta ao Mundo para um pouso em Boston, nos Estados Unidos. O motivo principal para esta troca água versus vinho foi um chamado para fazer um curso que até então estava meio nebuloso, mas a grosso modo, trataria de "Como Criar Negócios de Alto Impacto". Por mais valiosa que tenha sido esta experiência, respirando um ar parecido com os de MIT e Harvard - imagino eu - com conhecimento sendo transpirado e inspirações inspiradas, era pouco. Abri o mapa dos Estados Unidos e pensei "por quê não viajar around?". E aí, hoje, esta resposta ainda não me vem completa. Não me vem em palavras. Mas me vem sentida. E meio que sem ela - ou com ela vaga - me veio outra pergunta: por que não tentar traduzir isto e compartilhar?
Assim, meus dois meses up-side-down-nos-United States of America serão aqui divididos em 3.1 blocos como uma segunda comemoração, afinal, "não existe felicidade, senão compartilhada" - com limites, acrescento. Como há "mais coisa entre o céu e a terra como sonha nossa vã filosofia", também há entre o que se conta e o que se vive:
1) "Não se preocupe em entender, viver ultrapassa qualquer entendimento". Clarice Lispector
12 de abril de 2012.
Achei BOSTON bonito e me lembrou muito o Canadá. Andei bastante e passei boas horas lendo no parque e reparando bem nas crianças conversando em inglês e aproveitando o mode off de vida em família. À noite encontrei colegas do curso e jantamos num elegantíssimo restaurante e ouso dizer que me senti num diálogo de Woody Allen - tudo (muito e quase) sem sentido. Na manhã seguinte arrumei minha mala somente meio aberta e peguei o trem rumo a Wellesley, campus da Universidade de Babson. A semana transcorreu bem, com relacionamentos mais superficiais, mas alguns interessantes e que se mantêm até hoje, de certa forma. Na minha última noite, quando então abri o mapa do país, optei por voltar a Boston e conhecer os campi de Harvard e MIT, além de visitar a fábrica da Samuel Adams e começar a trajetória americana a partir daquele ponto.
Na mesma intensidade ingênua de que "it would be easy like Sunday Morning", sofri para achar hotel e tive que antecipar minha ida para Nova York - cidade seguinte do roteiro. Acabei pagando USD 218.00 pela noite e reservei, então às pressas, um hostel na Big Apple por USD 45.00 a diária, com a garantia só de um private room. Aquelas horas marcaram a primeira vez, daquela viagem, em que eu pensei em desistir, por não saber enfrentar, com frieza, raciocínio lógico e ágil, a dificuldade de achar um lugar para ficar e seguir meus dois meses sabáticos: já na manhã em NY fui à agências de turismo para tentar comprar pacotes internos e me aliviar de tais stresses, mas o que tinha era somente para a partir de Maio: estava no início de Abril. Sentada num café, aparentemente muito bem resolvida com "onde ir? como e quando?", rascunhei um roteiro a partir de um dos que li num dos muitos folders das agências e me abria, literalmente, para um caminho sem volta.
Nova York.
Chegando, passei um perrengue danado: errei de metrô e tive dificuldade de entender o inglês das pessoas, principalmente dos negros. Liguei para o celular de alguém do hostel, que era o número que constava no site deles e preferi pegar um taxi do que arriscar mais uma vez as orientações por debaixo da terra.
O motorista tinha cara de afegão e poucos amigos.
Fui bem recebida pelo dono do hostel, embora o lugar era de dar medo e frio na espinha - como diz a Lorena, cenário de assassinato de filme (americano). Quarto pequeno, quente, basculante mínimo. Cheirava à velho. Mofo. O banheiro era no corredor. Tinha toalha e lençol em cima da cama, mas não cobertor. A temperatura era de graus negativos. Na primeira noite eu quase congelei, embora me "acostumasse" com o frio, todas as noites me preparando com meias, luvas, cachecol, touca e casacos, bem encolhida, para tentar concentrar o calor do meu corpo, nele mesmo.
Logo no início da manhã seguinte, um amigo do Meet, também indiano, me enviou mensagem pelo celular se apresentando e me convidando para jantar. Ah, sim!: Em Boston comprei um Sim card que por 10 dólares por mês me dava acesso ilimitado a internet e também sms (inclusive DDI: mamãe seria infinitamente mais feliz).
Para não parecer estranho só eu e ele no jantar, chamei três colegas que estavam no curso comigo em Boston e que eu sabia que também passariam alguns dias por NY. Foi uma noite super agradável, embora às vezes me desprendia do português para dar mais atenção ao amigo do Meet. Nos falamos mais algumas vezes, mas não nos encontramos de novo. Nunca entendi o porquê. E hoje fica claro que nem o nome dele me recordo facilmente.
Por outro lado, fui agraciada com a mensagem da Jess, suíça-espanhola que estava em NY para um Congresso, mestranda em uma universidade em Thunderbird. Nos encontramos no Soho, tivemos um lindo almoço e acabamos por rodar muito, inclusive Chinatown e Little Italy. Engraçado repensar a conversa que tive com ela, porque entre tantas coisas, o que mais me marcou foi nossa inquietude em relação aos jovens e as corporações com suas ofertas de trabalho. Me lembro que rascunhei uma ideia de um modelo de negócio que pudesse agregar diminuição de custo às empresas, com recrutamento, caso elas contratassem corretamente, por identificação e não por quantidade. Entendi, mais tarde naquela viagem, que a minha inquietude trazia três coisas consigo: trabalhar internacionalismo e cultura, comunicação e entendimento de "mercado" e "pessoas". Mal sabia eu que semanas mais tarde conversaria com a Paula e que em sete meses eu participaria da co-criação de uma empresa que made it happen!
Dos lugares que visitei, o Central Park foi o mais alucinantemente belo, apesar do Strawberry Fields para mim ter um impacto tal qual quando me deparei com a Monalisa no Louvre. O Memorial do World Trade Center me despertou uma reflexão sobre se fazer um show com a morte dos outros. Tive uma incompatibilidade com a energia daquele lugar, mas entendi, como em nenhuma aula de história, o significado e o sentido da cultura americana.
Para descontrair, a Broadway! Mary Poppins indescritivelmente me levou de volta à minha infância e à magia da vida. Interessante passear pela Wall Street (+Biblioteca Pública) e 5th Avenue, ir ao Empire States e o Top of the Rock, além de "madrugar" pela Times Square.
Ao longo do dia, tudo era literalmente luz! O medo de voltar para o hostel à noite nunca passou, mas com o tempo ficou mais leve. Era só andar rápido, sem encarar ninguém nem farejar os aspectos ruins dos becos. Ignorar a sólida e insegura solidão escura. Estive, ao longo de toda a viagem, mas principalmente nessa região N/NE dos EUA, dificuldade com alimentação e viciei, como na Líbia, em saladas: Eu voltava ao paladar saudável e natural no país dos hambúrgueres e dos refis de refrigerante.
Ainda em Nova York, me aventurei pela Central Station e comprei um bilhete: Na FILADÉLFIA abri exceção alimentar para o sanduíche mais famoso deles e super me recomendado por uma amiga, mas achei sem graça e sem gosto. Ou dei azar, ou é mais uma das falações que ganham fama - sem razão. Lá, não aproveitei muito porque o mapa que consegui na estação era ruim, não achava pessoas com aparência solícita para perguntar e passei a manhã perdida, tentando me achar e achar o tal Joe's Steake para comer o Philly. À tarde, andando sem rumo e tendo abandonado o mapa, acabei encontrando todos os lugares turísticos e agradeci por ter ido só por 1 dia. Diria que é uma cidade para não voltar.
No dia seguinte, um dia normal, a Big Apple ficaria para trás. Era chegada a hora do check-out e fechei a porta daquele quarto também sem sentimento saudoso de volta. Por mais querido que o dono fosse, o cheiro e o ar não me traziam conforto, não sei também se segurança. Ali naquele quarto, agradecia por estar num dos países mais freaky ever! Se fosse num Brasil, I'm sorry, mas não ficava não.
Washington.
Mais perrengue para chegar ao hostel. Tentei ir a pé da estação de metrô, como sugerido. Não achei, peguei taxi. O lugar além de feio, trazia um mendigo bêbado tagarelando na aparente porta de onde eu deveria ir. Fingi que estava tudo bem. Não havia campainha. Bati na porta, liguei e nada. Quase em desespero, porque anoitecia, decidi checar o endereço. Ufa! Eu estava há duas casas para trás do lugar! Mesmo assim, no endereço certo não havia campainha e ninguém atendia ao telefone. Em alguns instantes, uma moça abriu a porta, de saída do predinho-casa; aproveitei, entrei e fiz o check-in: fui recebida com toalhas e cobertor - bem melhor agora!
Ao longo dos três dias só me deparei com três meninas, que se alteraram - não ficaram todos os dias ali hospedadas. Uma devia ter uns 40 anos, alemã; uma de 20 e poucos, japonesa, estudante no Canadá; uma da minha idade (27 na época), húngara, estudante em NY: todas a passeio após atenderem a congressos. Exceto o Pentágono, consegui ir aos principais pontos turísticos e me decepcionei com a Casa Branca: bonita mesmo é a Biblioteca Pública e o Capitólio. Andar por DC é melhor a pé, embora não tenha tentado ônibus. Fora da região do President's Park, tudo me parecia descuidado. Me lembro que me surpreendi, ou não sei porque, me chamou a atenção da maioria de negros compondo a população.
Eu, sempre procurando Pandas, sabia que no Zoo de San Diego haveria, mas não iria passar por lá. Olhei o zoo de Washington na internet e havia possibilidade. No dia em que ia passar por Georgetown, mudei meus planos e fui para o zoológico. Indescritível a sensação de ver dois Pandas Gigantes, fofos, brincando e se alimentando, na minha frente. Foi um ótimo remédio para curar uma reflexão depressiva depois de ter visitado, no dia anterior, o Memorial da 2a. Guerra, do Vietnã e do Holocausto.
Para fechar com chave de ouro, na volta, vi uma reunião de pessoas uniformizadas no metrô e na saída da estação em que eu deveria descer para voltar ao hostel, decidi segui-las. Descobri que era a final do campeonato de Hóquei. Não me animei em pagar pelo ingresso, mas entrei em um pub do time local, pedi um filé de peixe frito com molho tártaro, regado a alguns draughts de cerveja e me envolvi com aquele bando de americano apaixonado, comemorando cada possibilidade de "gol".
No check-out, na manhã seguinte (e vitoriosa), a moça que mal falava inglês, embora fosse dali, disse que era mais rápido eu esperar um taxi na rua do que se ela ligasse pedindo. Começou a chover e decidi ir andando, arrastando a mala. Cheguei no metrô e nada de taxi. Só deu certo porque eu não tinha planejado isso como das outras vezes. Esperei pacientemente por um, quase que num sintoma de acostumar-me com esta parte de partidas e chegadas, quando ele enfim me deixou na estação de ônibus, para que eu pudesse seguir para Williamsburg.